O lugar da ciência na vida quotidiana

o lugar da ciência no quotidiano

O lugar da ciência na vida quotidiana

Por Sergio Viula

É comum ouvirmos pessoas dizerem, aqui ou ali, que não confiam em cientistas. Elas geralmente se gabam de seu suposto desdém pela conhecimento rigorosamente científico e pelos que o produzem. Costumam dizer que seu livro sagrado basta ou que seu deus, seja lá qual for o seu nome, é absolutamente suficiente para todas as suas necessidades. Mas será que elas vivem mesmo à altura dessas crenças?

Sobre um ou outro livro sagrado ser suficiente para suas vidas, basta ver que até para receitas culinárias, essas mesmas pessoas precisam recorrer a publicações que não constam em seu do cânone de seus livros sagrados. Não apenas, isso. Elas também recorrem a vários livros que supostamente inspiram, ensinam e lançam mais luzes sobre sua compreensão do tal texto autossuficiente. Basta observarmos quantas livrarias religiosas abarrotadas de livros de todos os temas grassam pelas grandes cidades. Então, essa conversa de que o livro sagrado basta, não sobrevive ao mais simples teste do dia-a-dia. Não apenas não é suficiente ler um livro só, como pode ser extremamente perigoso.

Quanto à ideia de que esta ou aquela divindade seja provedora absolutamente suficiente, isso também não sobrevive à observação honesta da pessoa mais simples.

Pessoas que creem na provisão divina sofrem todos os desastres naturais, assim como aqueles provocados pela ação direta ou indireta dos seres humanos. Quando escapam de ferimentos ou da morte, dizem “foi deus que me livrou”; “eu nasci de novo, graças a deus”; “se não fosse deus, eu estaria morto agora”. Fazem-no, apesar de terem escapado de acordo com as mesmas razões estatísticas de qualquer mortal. Quando morrem, idem.

Mais do que isso, existem inúmeros casos de acidentes envolvendo ônibus de igreja que transportavam pessoas para um retiro ou já de volta para casa. Há casos de igrejas que desabaram sobre os fiéis. Esses dias, passando pelo bairro de Ramos, no Rio de Janeiro, vi um mosteiro que tem paróquia anexa, rodeado por cerca eletrificada e vários avisos desencorajando os ladrões. Como dizia Nietzsche, todo mundo acredita na oração, mas ninguém dispensa a polícia.

E, quando algo assim acontece, as pessoas que pertencem àquelas comunidades de fé não atribuem aos deuses a responsabilidade pela ação destrutiva ou mesmo por sua omissão no impedimento do desastre, ou por sua recusa em socorrer o fiel. Ninguém diz “deus derrubou esse ônibus da ponte”, “deus enviou esse bandido”, “aprouve a deus que suas servas fiéis fossem violadas e seus maridos assassinados”.

E quanto ao desdém dessas pessoas pela ciência?

Bem, o número de smartphones nas mãos desse povo já diz muito. Além disso, seus líderes não dispensam qualquer um daqueles “mimos” que os experts em transporte, comunicação, segurança, saúde, serviços bancários (inclusive a famosa maquininha de cartão para dízimos e ofertas) já desenvolveram, mesmo não pretendendo que fossem usados para certos fins obscurantistas.

Essa atitude de desdém também se reflete na ingratidão para com médicos, farmacêuticos, enfermeiros e outros profissionais de saúde responsáveis por seu restabelecimento. Depois que estes fizeram tudo e deu certo, esses fiéis dizem “foi deus que me curou”, ou “deus é médico dos médicos”, etc.

Por outro lado, quando sofrem efeitos permanentes de um problema de saúde, reclamam a plenos pulmões que os médicos foram incompetentes, que houve erro médico, etc. Quando morrem, os familiares e amigos, que porventura tenham essa mentalidade, dizem que foi culpa dos médicos, ou que não se pode mesmo confiar na medicina. Mas onde está o deus provedor? Onde está o espírito evoluído de médicos desencarnados que ficam tagarelando por aí através de médiuns e supostamente escrevendo zilhões de páginas de livros psicografados, sem trazerem sequer uma dica para a cura de um simples vitiligo ou para uma doença tão grave quanto o mal de Alzheimer?

Não serão as superstições que nos darão respostas verdadeiras. Mas, cabe perguntar aqui se existe alguma coisa em termos de conhecimento humano que seja infalível? E a resposta é não. Tudo pode ser questionado, desde que esse questionamento seja devidamente embasado e corretamente construído. E é assim que a ciência avança. Já as crenças, as superstições, as fórmulas mágicas, os deuses de toda espécie tendem a se perpetuar através do senso comum e não permitir o menor questionamento. O que é corrigido nessas crenças só o é, graças ao avanço do conhecimento humano e das novas experiências de vida que nossa espécie vai fazendo ao longo do tempo. É como o fiel que diz: “A evolução é verdadeira, mas foi deus quem estabeleceu as regras.” Até há pouco, o evolucionismo era blasfêmia e conduzia ao inferno, mas agora, diante das inquestionáveis evidências de que as espécies são fruto de uma fantástica dinâmica que inclui combinações, adaptação, sobrevivência e reprodução, estando sujeita a imperceptíveis mudanças que, ao longo de milhões de anos, levam ao surgimento de novas espécies – não dá mais para dizer que a evolução é uma invenção ateísta. Eles precisam tentar resgatar alguma coisa de seus deuses nisso tudo. Mas, até quando?

Dia desses, depois de escrever um texto sobre de onde vem o ódio de cristãos fundamentalistas contra os homossexuais, publiquei o link num grupo que tem gente teísta e ateísta debatendo. O texto é historicamente coerente, informativo e respeitosamente questionador. Um rapaz tentou me dizer algo que eu supostamente não sabia, citando alguns versos da carta de Paulo aos Coríntios.

Depois de informar o rapaz pacientemente que isso estava realmente escrito na Bíblia, mas não causava o menor abalo ao texto que eu havia compartilhado, uma vez que esses versículos paulinos, por si só, já são consequência da história apresentada no post, convidei-o a ler o artigo, e depois fazer algum comentário realmente embasado na leitura. Ele agradeceu e disse que não precisava, porque a Bíblia era suficiente para ele. Fiquei pensando porque as pessoas comentam textos que não leram, a partir de títulos que não entenderam? Não seria melhor ficarem quietas a passarem-se por tolas?

Não é o próprio livro “suficiente” dele que diz: “Até o tolo, estando calado, é tido por sábio”? Isso está em Provérbios 17:28, mas parece que ele, apesar de considerar a Bíblia suficiente, não a leu com suficiente atenção. Minha reposta, parecia mais biblicamente coerente do que a dele, uma vez que esse mesmo livro de Provérbios diz:

“Não respondas ao tolo segundo a sua estultícia; para que também não te faças semelhante a ele.” (Provérbios 26: 4)

Não discuti. Disse simplesmente: “Típico. Vlw.” Mas, não posso culpa-lo. A Bíblia se contradiz nisso também, quando diz:

“Responde ao tolo segundo a sua estultícia, para que não seja sábio aos seus próprios olhos.” (Provérbios 26: 5)

E agora, Jeová? O cara faz uma coisa ou faz outra? Responde ou não responde?

Uma coisa é certa: Não será suficiente ler esses dois versículos, com conselhos diametralmente opostos, e saber imediatamente o que fazer. O leitor continuará precisando fazer a escolha que melhor lhe convier em cada contexto. Continuará dependendo de sua inteligência para lidar com essas situações na vida.

O resumo da ópera é que não há livro que seja suficiente. Não há pessoa que tenha numa só fonte tudo o que precisa para viver. Precisamos de ciência, tecnologia, arte, esporte, culinária, e por aí vai. E em tudo isso, sempre há espaço para novos saberes e novas experiências.

O lugar da ciência (não me refiro às pseudociências como homeopatia, acupuntura, astrologia) é conquistado pelo zelo dos que a produzem em trabalhar com rigor metodológico, com obstinação em testar suas teorias como se quisessem provar que estão erradas. Isso acaba conduzindo ao conhecimento verdadeiro sobre aquilo que se está estudando. Dali em diante, se poderá dizer seguramente que tal coisa é assim, funciona assim e pode ser usada para tais e tais finalidades com tais e tais benefícios e prejuízos. E se novos conhecimentos puserem isso em xeque, novos estudos serão feitos até que se corrija o que não estiver de acordo com a realidade.

E isso nunca acaba, porque cada solução estabelece novas relações entre o que há no mundo, inclusive em nós. E essas relações apresentaram novos desafios a ser superados. O trabalho do cientista tende à inovação, ao progresso, com tudo o que isso implica. A missão dos pregadores é focada na conservação do passado, em eventos futuros supostamente predeterminados, mas nada disso fica de graça para quem leva tais ideias realmente à serio.

Não devemos endeusar a ciência. Ela não está aí para ser cultuada. Pode ser usada para destruição ou para edificação, mas se for mal usada, isso será por causa da mesquinhez humana. O conhecimento, em si, é melhor que a ignorância. Se a ignorância fosse uma bênção, como diz o adágio popular, os aparelhos de GPS seriam um completo fracasso de vendas, porque as pessoas ficariam felizes em estarem perdidas. Se não devemos endeusar as ciência por um lado, por outro, não devemos despreza-la jamais, pois ela é o que de melhor já produzimos para a solução dos problemas que enfrentamos nesse mundo hostil – tanto os que já estavam aí quando surgimos no planeta quanto aqueles que criamos ao longo de nossa experiência evolutiva.

Além disso, a produção científica hoje não se faz na garagem de casa, salvo um caso ou outro. Não é mais a realização solitária de um visionário. Todos os projetos científicos demandam financiamento e sua execução costuma ser cara, começando com alguns milhares de dólares, chegando até alguns bilhões, dependendo do tipo de pesquisa. Uma coisa é desenvolver um novo aplicativo para smartphones, outra bem diferente é enviar pesquisadores ao espaço. E sempre que há corporações e governos envolvidos, há interesses econômicos e ideologias competindo, em alguma medida, com os mais nobres sentimentos. Serão sempre os jogos de poder que viabilizarão ou inviabilizarão o progresso em qualquer campo de atividade humana. A produção científica e suas aplicações não ficam isentas dessas tensões.

Precisamos divulgar ao máximo o conhecimento acumulado, estimular a atitude científica nas novas gerações, investir na criação e no uso dos meios necessários para que se produza cada vez mais conhecimento científico, e colocar tudo isso a serviço do bem-estar humano e da preservação do muito que já destruímos com nossa esmagadora colonização do planeta (mais de sete bilhões de vorazes consumidores e produtores de lixo) em todos os ambientes e condições imagináveis. E vale ressaltar que se depender dos deuses e seus supostos livros sagrados, estaremos todos à deriva.

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* Sergio Viula foi pastor batista, é formado em filosofia, administrador do blog Fora do Armário www.foradoarmario.net, autor de Em Busca de Mim Mesmo, livro que fala sobre religião, sexualidade e ateísmo, é membro da Liga Humanista Secular do Brasil, e pode ser encontrado no Facebook em: https://www.facebook.com/sergio.viula


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3 comentários sobre “O lugar da ciência na vida quotidiana

  1. Pingback: O lugar da ciência na vida quotidiana – AASA | EVS NOTÍCIAS.

  2. Excelente texto! É verdade, criticam e subestimam a importância da ciência no dia-a-dia dos indivíduos,entretanto, não sobreviveriam sem ela.

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